Não é de hoje que a abundância
de serpentes na região da Fa-
zenda Experimental Lageado,
onde ficam algumas unidades da Unesp
em Botucatu, atrai cientistas. Já no final
do século 19, o pioneiro nos estudos so-
bre seus venenos no Brasil, o médico Vi-
tal Brazil, se instalou nos arredores para
pesquisá-los. Tempos depois, era criado
ali o Cevap (Centro de Estudos de Venenos
e Animais Peçonhentos), e, assim como o
maior especialista brasileiro em picadas
de cobras, o infectologista Benedito Barra-
viera, que coordena o centro, também se
debruçou sobre a espinhosa tarefa de estu-
dar serpentes, seus produtos e derivados.
Após duas décadas, o esforço de Barra-
viera deu frutos: um bioproduto inovador.
Sua equipe desenvolveu um selante de
fibrina, uma espécie de cola biológica, a
partir da mistura de uma enzima extraída
do veneno da cascavel (Crotalus durissus
terrificus) com fibrinogênio de sangue de
grandes animais (bubalinos, equinos, bo-
vinos ou ovinos), cuja ação se baseia no
princípio natural da coagulação.
O selante foi testado com sucesso na
cicatrização de úlceras crônicas e como
substituto ou adjuvante de sutura em cirur-
gias.
Colas biológicas não são algo exatamente
novo. Têm sido usadas desde a década de
1940 em diferentes aplicações clínicas, ha-
vendo inclusive alguns selantes de fibrina
comerciais. Mas, apesar de diminuírem a
colonização de bactérias e favorecerem a
cicatrização, os adesivos existentes no mer-
cado são caros e, ao contrário do produto
do Cevap, têm a desvantagem de serem
feitos com trombina bovina e fibrinogênio
extraído de sangue humano, o que repre-
senta um alto risco de transmissão de do-
enças infecciosas, como aids e hepatite C.
A expectativa de Barraviera é que o novo
selante possa servir no futuro para reco-
nectar raízes nervosas. “Aí poderá estar,
por exemplo, uma resposta para pacientes
com trauma de coluna que se tornaram
tetraplégicos.” O pesquisador refere-se a
implicações de pesquisas realizadas em
parceria com o Laboratório de Regene-
ração Nervosa do Instituto de Biologia
da Unicamp, com resultados publicados
nas revistas Neuropathology and Applied
Neurobiology, Journal of Comparative Neu-
rology e Journal of Neuroinflammation.
Está sendo testado, por exemplo, o uso
da cola biológica como suporte para células-
-tronco no tratamento de modelos animais
com lesões na interface do sistema nervoso
central com as raízes nervosas. “Em huma-
nos, esse tipo de lesão ocorre com maior
frequência em acidentes como quedas de
moto, em que há um afastamento brusco
do pescoço em relação ao ombro. Nesses
casos, as raízes nervosas do pescoço são
puxadas e se desligam da medula”, explica
o biólogo Alexandre Leite de Oliveira, que
coordena os estudos na Unicamp.
Essa é uma lesão grave, em que ocorre
a morte de 80% dos neurônios afetados,
e que resulta na perda do movimento e
da sensibilidade do braço, do antebraço
e da mão. A tentativa de recosturar cirur-
gicamente os nervos na medula espinal
é uma tarefa delicada, que costuma ter
pouca ou nenhuma eficiência.
No estudo conduzido por Roberta Bar-
bizan, aluna de doutorado da Unicamp, e
coordenado por Oliveira, as raízes motoras
lesionadas foram arrancadas e coladas de
volta na medula com um gel composto
por uma mistura de selante de fibrina e
células-tronco derivadas da medula óssea,
para acelerar a regeneração. Depois de 30
dias, essas raízes continuavam conectadas
nas posições corretas e as células-tronco
permaneciam no local da aplicação.
O processo de produção do selante, en-
tretanto, ainda é muito trabalhoso. Numa
espécie de lição de humildade oferecida
pela natureza, as tentativas de sintetizar as
moléculas do fibrinogênio do sangue e da
trombina do veneno de cascavel em labo-
ratório, até o momento, foram frustradas.
“Quimicamente a substância fica igual à
proteína natural, o DNA é o mesmo, mas
não há atividade biológica”, explica o ve-
terinário Rui Seabra Ferreira Jr., pesquisa-
dor do Cevap. Em vista disso, os esforços
dos cientistas do centro estão focados na
tentativa de sintetizar apenas a parte da
molécula responsável pelo efeito selante.
Por enquanto, para produzir o adesivo
é preciso contar com a disponibilidade
das fontes naturais das matérias-primas e
com apoio da biotecnologia. Em primeiro
lugar, é necessário criar animais de gran-
de porte para a extração de fibrinogênio
(proteína convertida em fibrina, necessária
para a formação de coágulos) do sangue.
O ponto crucial é garantir a biosseguran-
ça da matéria-prima, já que a extração
do sangue do animal envolve o risco de
contaminação por doenças, tais como a
encefalopatia espongiforme bovina – o
temido mal da vaca louca.
A enfermidade é causada por um príon
que pode estar presente na carne, nos os-
sos, no sangue e nas vísceras de animais
usados na fabricação de ração para o ga-
do. Tem diagnóstico difícil, realizado em
poucos centros especializados no mundo.
Para contornar esse problema, o Cevap tra-
balha no desenvolvimento de um “animal
verde”, o qual possui uma certificação de
que não recebeu nenhuma alimentação
com proteína de origem animal.
“A metodologia envolve testes com isó-
topos de carbono-13 e nitrogênio-15, para
identificar se em algum momento da vida
o animal consumiu proteína de origem
animal”, explica Barraviera. “Se consumiu,
seu sangue não pode ser utilizado, nem
para a produção do selante, nem para
qualquer outra finalidade.” Esses estudos
estão sendo conduzidos em colaboração
com o Centro de Isótopos Estáveis de Bo-
tucatu.
Os cientistas precisam também criar em
cativeiro serpentes 100% saudáveis para
garantir a qualidade do veneno, processo
que envolve várias etapas de biossegu-
rança. As cobras que chegam ao Cevap
levadas pela população são vermifugadas,
pesadas, registradas e recebem um mi-
crochip de identificação. Depois, seguem
para o quarentenário, onde são alojadas
em caixas plásticas transparentes. Um
recipiente com solução desinfetante co-
locado na porta evita que os sapatos dos
pesquisadores contaminem o ambiente.
FONTE: UNESP